Caetano Veloso, um homem cheio de palavras

O cantor e compositor brasileiro completou 77 anos (Divulgação/Creative Commons)

Caetano Veloso, em entrevista à Bia Corrêa do Lago, diz que gosta de escrever. Confessa ser um homem cheio de palavras, com uma cabeça cheia de palavras. Mas fala também que já teve certa inibição em relação aos livros, por não ter tido intimidade com eles na infância e que sonhava, quando menino, em ter uma biblioteca.

Bia — Você gostava de escrever ensaios aos 18 anos ou você queria escrever prosa ou poesia?

Caetano — Prosa narrativa não. Eu não gostava muito de romance, eu gostava de ler Sartre e João Cabral de Melo Neto, mas não gostava de Eça de Queiroz. Eu demorei a gostar de ler romance… Na verdade, era a Dedé que gostava de ler romances e fez uma campanha e me fez ler O vermelho e o negro.

 

Bia — No seu disco, Livro, na música “Livro”, você diz que, na sua casa, não tinha livros, na sua cidade, não tinham livrarias e, como você diz que todas as suas músicas são autobiográficas, eu acredito que você estava falando de você mesmo.

Caetano — Eu estava mesmo. Essa música é 100% autobiográfica.

 

Bia — Então na sua casa não tinha livros?

Caetano — Não tinha livros como aqui, não tinha. [Caetano aponta as estantes em volta] Quem eu via em casa lendo era minha mãe. Ela gostava de ler esses livros para mulheres, tipo M.D. Lee, livros tipo série cor-de-rosa, literatura para moças. Ela passava as tardes lendo, tinha o hábito de ler desde nova. Mas eram livros descartáveis, não ficavam em nenhuma prateleira.

 

Bia — Então não tinha uma biblioteca…, e na sua cidade natal Santo Amaro, não tinha biblioteca? Na cidade não tinha livraria?

Caetano — Não tinha livraria na cidade; biblioteca tinha, biblioteca pública. Eu fui algumas vezes à Biblioteca Pública de Santo Amaro. Eu me lembro de olhar e ler grande parte de Dom Quixote de La Mancha numa edição grande, com aquelas gravuras, lá na biblioteca em Santo Amaro. Meu pai, que era inteligente, tinha tido amizades assim mais letradas, que continuava cultivando. Os amigos dele eram pessoas que gostavam de literatura. Ele próprio sabia muitos poemas de cor, que ele dizia dentro de casa.

 

Bia — É porque a gente, quando acompanha entrevistas suas, ou, quando você fala, dá a impressão de que a sua casa era um verdadeiro sarau. O seu pai gostava de Noel Rosa, sua mãe de Vicente Celestino e Ataulfo Alves… 

Caetano — É, em parte, era uma casa musical, mas não era muito bem organizada intelectualmente. Meu pai, que era o mais bem informado e poderia ter se desenvolvido como um cara de mais atividade intelectual, abandonou isso, e eu sou um dos filhos mais moços; aquilo já estava longe, não havia esse ambiente, não havia uma prateleira de livros em minha casa. 

 

Bia — Agora, Caetano, então a música entrou na sua vida por um viés familiar ou não? Foi fora de casa que isso se deu, ou foi com o João Gilberto, você que tanto menciona o dia em que ouviu “Desafinado” como sendo um marco… O que foi exatamente que te levou?

Caetano — É, o João Gilberto veio depois. A minha casa era como eu estava descrevendo, mas quanto à música, havia um pouco mais de organização e mais constância também, porque minha mãe cantava muito, cantava enquanto fazia outras coisas, enquanto não estava lendo, enquanto trabalhava na cozinha, enquanto arrumava a sala, e, ás vezes, me punha no colo e cantava canções e, como ela notou que eu gostava de aprender, cantava entoado e aprendia as melodias e as letras com facilidade. Tem sambas que eu me lembro de ter aprendido com minha prima-tia Daia. Tanto eu quanto Bethânia, a gente lembra exatamente o que aprendeu com minha mãe e o que nós aprendemos com minha Daia. À medida que a gente ia crescendo e chegava aos nove anos de idade, ia para dona Aidil começar a aprender a tocar piano. Todos os filhos foram. E eu abandonei o curso mas comecei a tirar as música de ouvido. Foi assim, havia a presença da música. 

 

Bia — Voltando para seu lado escritor… Você escreveu um livro de 500 páginas, então eu fico pensando como foi escrever esse livro… Você teve um convite de uma editora americana, mas, entre ter o convite e sentar e fazer… Essa é uma obra de fôlego, não é?

Caetano — Pois é. Primeiro, eu pensei e não aceitei o convite dos editores americanos de escrever o livro, mas depois, prometi que tomaria umas notas para ver se escrevia, e essas notas que eu fui tomar viraram o livro, porque eu sou um homem cheio de palavras, a minha cabeça é cheia de palavras. Eu me deito e demoro a dormir porque tenho muitas palavras. Na verdade, eu leio muitas palavras, depois, eu penso muitas palavras e eu gosto de escrever. Na verdade, eu poderia escrever muito. Você vê que esse Verdade tropical é um livro escrito com prazer de escrever, até com uma certa exibição de exuberância assim, porque são parágrafos longos, muitos travessões, e parênteses e digressões.

 

Bia — Você diz uma coisa engraçada, que você sentia uma espécie de inibição com relação aos livros?

Caetano — Eu sentia, por não ter intimidade com eles em minha casa. Eu sonhava, quando era menino, em ter uma biblioteca. Em minha casa, onde eu morava com Paulinha, tinha, tem uma biblioteca, e eu olhava para ela assim… Poxa, quando eu era menino, eu sonhava com isso, mas tinha vergonha, ficava com inveja de quem tinha. Sentia vontade de ser assim, ter muitos livros e ler. Achava bacana as pessoas que eram assim, mas como não era uma imagem habitual, como não estava dentro da minha casa, eu ficava envergonhado. 

 

Bia — Olha, você está falando uma coisa interessante e a gente pode imaginar outras pessoas que não tiveram biblioteca e não sabem se expressar e verbalizar como você.

Caetano — Como eu tive que superar isso, eu tenho a impressão de que um número muito grande de pessoas no Brasil, onde há poucas livrarias, sentem-se oprimidas por isso. Às vezes, têm atração e, dificilmente, superam a timidez que é tão perfeita que não se manifesta como timidez, manifesta-se como total desinteresse, incapacidade, preguiça de ler, vergonha de olhar para as lombadas quando, às vezes, já houve uma atração…

 

Bia — E até porque a pessoa nunca teve uma orientação de como se aproximar, nunca teve ninguém que dissesse: “Olha, lê isso, isso e isso, esse é o básico para você poder caminhar.”

Caetano — O Brasil tem muito pouco isso, tem pouco nas escolas, tem menos do que deveria ter. Não chega num tom muito bom porque as próprias pessoas que chegam para dizer isso não passaram por um caminho desembaraçado como deveriam. A sociedade brasileira não encaminha com naturalidade as pessoas para isso. Você viaja poucas horas, chega em Buenos Aires e vê, numa cidade cheia de livrarias, uma situação completamente diferente do Brasil. E aqui, o brasileiro deveria perder a vergonha de ler.

Para comemorar os 15 anos do Canal Futura, em  2001, a escritora e, uma das fundadoras da Editora Capivara, Bia Corrêa do Lago, entrevistou personalidades para o programa Umas Palavras. O conteúdo das entrevistas eram tão ricos, que ela resolveu editar um livro que leva o mesmo nome do programa. 

Conheça mais sobre a publicação e outros entrevistados, como os escritores Adélia Prado, Ferreira Gullar, José Saramago e João Ubaldo Ribeiro entre outros no livro Umas Palavras – 15 entrevistas memoráveis

Umas Palavras – 15 entrevistas memoráveis